A literatura do período Medieval apresenta,
constantemente, relatos
de viagens a outros mundos, empreendidas de diferentes formas: a pé, a cavalo, de barco, normalmente com um guia ajudando o personagem principal a alcançar seus objetivos, trazendo à luz a
mentalidade deste homem medievo. O
universo era interpretado como um imenso conjunto de símbolos
- forma de expressão máxima do homem da Idade
Média
- a maneira com que ele exteriorizava seus
sentimentos.
O principal livro deste período foi a Bíblia, outras produções
relacionavam-se aos seus textos ou a interpretações.
No contexto medieval, cabe ressaltar que a maior parte da população era
analfabeta, tendo acesso as narrativas bíblicas somente através de pinturas,
mosaicos e vitrais. A partir do reinado de Carlos Magno esta situação começa a
ser modificada através do incentivo às atividades culturais, incluindo educação
e literatura. Assim, juntamente com o renascimento urbano e o surgimento de uma
burguesia, nasce uma obra que perpassou os tempos, e que permanece, até hoje,
atraindo e influenciando a vida de quem a lê. Trata-se de A Divina Comédia,
de Dante Alighieri.
A Florença do século
XIII era caracterizada pela autonomia política e econômica, pois servia de
entreposto comercial, possuía pequenas indústrias e artesanato, berço cultural
da Itália. Encontrava-se assolada por brigas políticas entre o Partido dos
Guelfos, divididos entre Brancos e Negros e o Partido dos Gibelinos. É neste
contexto em que vive Dante, nascido em Florença provavelmente no dia 30 de maio
de 1265.
Dante é letrado no
convento de Santa Cruz e aprofunda-se em Literatura, Retórica e Filosofia na
escola do mestre Bruno Latini. Aos nove anos apaixona-se por Beatriz Portinari,
que casa com um banqueiro e morre logo em seguida, em 1290. Dante, embora não
esquecendo a imagem de Beatriz casta e beatífica, teve outros amores terrenos e
casa-se com Gemma Donati, com quem teve três filhos.
Desenvolve carreira
pública e, como político, tenta apaziguar as facções rivais. É autor de uma
proposta que expulsa da cidade os homens mais violentos das duas facções. O
papa Bonifácio VIII intervém e, com a ajuda de Carlos de Valois, o partido dos
Negros assume o poder. Em 1301, os Negros executam sua vingança, saqueando as residências
dos Brancos e exilando-os.
De 1302 até 1321, ano
de sua morte, Dante, exilado, vaga pela Itália, vivendo de favores, talvez até
mesmo de esmola. Ao longo dos dez últimos anos de sua existência - 1310-1321
- escreve a Comédia. O poema, composto
com base no simbolismo do número três (número da Santíssima Trindade), possui três
partes - Inferno, Purgatório e Paraíso – cada qual dividida em 9 círculos, que
totalizam 27 níveis, conta com três personagens principais - Virgílio, personifica
a razão, Dante, representa o homem e Beatriz, simboliza a fé. Faz, de certa
forma, um “acerto de contas” com seus inimigos, com seus medos e com seu eterno
amor, Beatriz.
Não se tem um consenso acerca do
título Comédia há quem afirme que se
deu por se tratar de uma narrativa que inicia na tristeza e termina com alegria;
por utilizar um estilo simples e linguagem vulgar, em oposição à tragédia,
escrita em latim; ou por se referir ao sofrimento de nossas vidas, em oposição
à alegria e paz do Paraíso, o eterno vislumbre de alcançar a Deus na hora da
morte. O adjetivo “divina” é acrescentado posteriormente, talvez por Boccaccio.
Dante se coloca como personagem e
escreve em primeira pessoa, representando o homem medievo, em busca de
dignidade moral e espiritual, assim como justiça social. Sua narrativa,
apresenta em contraste, traços de um homem moderno, que nega seu passado e
busca na antiguidade clássica seus referenciais. Os personagens que povoam sua
obra são pessoas de seu convívio, personalidades históricas, mitológicas ou
políticos de Florença. Em seu poema, mostra a vida e os vícios da sociedade
italiana da época, assim como a mentalidade, baseada na cosmovisão medieval,
nas concepções filosófica e religiosa.
Se utilizando de alegorias e
significados morais, o poeta pretendia escrever uma obra de doutrina e
edificação, compreendendo o saber de seu tempo, teológico e filosófico. Nele é
apresentada a história da conversão dos homens, que buscam a redenção de seus
pecados, para encontrar Deus. Dante afirma em seu poema que não basta, para o
homem, dizer que se arrependeu de seus pecados, e sim que é preciso ter fé e
ser racional na sociedade do dogma.
INFERNO
“Por mim se vai à cidade das
dores; por mim se vai à ininterrupta dor; por mim se vai à gente condenada. Foi
justiça que inspirou o meu Autor; fui eleito por Poderes Divinais, Suma
sapiência e Supremo Amor. Antes de mim, havia apenas coisas eternas, e eu,
perduro. Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais!” (DANTE, p. 19)
A Divina
Comédia estabelece uma hierarquia dos sete pecados capitais, cujas penas
impostas satisfazem a significados simbólicos. O poema fascina pela riqueza de
detalhes quase visuais, pelas dualidades bem e mal, pecado e penitência, amor e
ódio, perfeitamente harmonizados em um clima tenso e soturno.
A narrativa tem inicio com o
poeta perdido em uma “selva medonha”, mostrando claramente como se sente o
poeta, homem de meia idade, exilado, passando por um momento de crise pessoal.
Depara-se, ao tentar sair desta selva, em busca de luz, com três feras: uma
pantera, que possivelmente representa a luxúria ou a cidade de Florença, um
leão, a soberba e o orgulho, e uma loba, a avareza ou também pode ser
interpretada como a cúria romana. Amedrontado, retorna à escura selva,
demonstrando, desta forma, a sucessão de simbologias empregadas ao longo dos
cantos, “ilustrando” suas ideias aos leitores.
A obra tem forte apelo político,
uma vez que os aliados de Dante são colocados no Purgatório ou Paraíso,
enquanto seus desafetos sofrem amargamente no Inferno. O autor evoca questões
da vida pública de sua cidade natal, conflitos políticos e familiares, assim
como suas questões pessoais, como seu grande amor por Beatriz.
No período em que o livro é
escrito começam a serem questionados os abusos de poder da Igreja e seus luxos.
Dante aponta estes comportamentos reprováveis da Instituição Católica, no
século XIV, que hoje ainda se fazem presentes ao noticiarem escândalos ocultos
nos bastidores da Igreja, como os crimes sexuais dos quais alguns membros são
acusados. Entretanto, mesmo percebendo tais faltas da Igreja, Dante mantém-se
fiel a sua religiosidade e sua fé, colocando Judas sendo mastigado por uma das
bocas de Lúcifer, no Nono Círculo do Inferno.
O perfeito delineamento dos
cenários aguça a curiosidade em vê-los representados. Ao contrário do
imaginário atual, que percebe o inferno como um local extremamente quente, o
Inferno de Dante, por vezes é gelado. Desprovido de luz, com furiosos ventos,
poços de sangue, vales de dor e sombras, “rios de águas negras”, “cheiros
pestilentos”... A descrição que o autor nos apresenta é assustadora e ao mesmo
tempo encantadora. Para o homem medieval a luz representa a segurança
psicológica, demonstrando, no livro, o intenso conflito entre o bem e o mal, presente
na mentalidade do período.
Os personagens que habitam os
versos ao extraídos da Antiguidade Clássica, sejam eles personagens históricos
ou figuras mitológicas, demonstram o conhecimento e a admiração do poeta por
aquele período. Seria por acaso a escolha de Virgílio, poeta grego que escreveu
Eneida, admirado por Dante, como guia?
Curioso destacar que no Canto IV,
Dante acorda, depois de atravessar o rio Aqueronte, na barca conduzida por
Caronte, no Primeiro Círculo do Inferno, onde ficam as almas que viveram uma
vida de virtudes, ou seja, não pecaram, porém, por não receberem o batismo. O
castigo destas almas é viverem eternamente torturados pelos desejos frustrados.
Neste círculo o autor coloca os poetas, filósofos e pensadores gregos – Platão,
Sócrates, Virgílio -, que mesmo admirando-os, não pode colocá-los no Paraíso,
demonstrando, assim, sua submissão aos princípios cristãos. Chamamos este
círculo de Limbo, recentemente exterminado pela Igreja Católica, abrindo
caminho para um questionamento fundamental: Para onde foram, portanto, as almas
que habitavam o Limbo?
O Canto seguinte traz Minos,
filho de Zeus, que após a morte desce ao Inferno, onde se torna juiz dos
mortos, avaliando suas culpas e sentenciando-os, enviando para o círculo
correspondente. Ele fica na porta do Segundo Círculo, no qual se encontram os
luxuriosos, que, segundo Dante, são as “sombras que o amor conduzira à
sepultura”. Cleópatra, Helena, Aquiles e Tristão são punidos aqui neste círculo
desprovido de luz. Seus espíritos são lançados, incessantemente, de um lado a
outro por fortes ventos. Mesmo punindo-os Dante sente por eles certa compaixão,
pois, na Idade Média, o sexo era aceitável somente através do matrimônio, para
fins de reprodução, ficando qualquer outra prática condenada ao Inferno.
No Terceiro Círculo os gulosos
são condenados a ficarem deitados sob forte chuva de granizo, água e neve,
tendo por características serem gélidas, escuras, impuras, pesadas e de odor
pestilento. Os condenados são aqui vigiados pelo cão Cérbero, que furioso
escancarava suas três bocarras e despedaçava, com suas garras aguçadas e seus
olhos vermelhos, as almas. Em alguns períodos Medievais a escassez de alimentos
fez com que a gula se tornasse um pecado mortal, digno de punição no Inferno.
Os avarentos e os pródigos se
encontram no Quarto Círculo, condenados a carregarem pesados fardos e a se
chocarem, incessantemente, enquanto gritam uns aos outros “Por que dissipar?” e
“Por que gastar?”. Neste círculo Dante coloca alguns papas, cardeais e clérigos,
que, desprovidos de identidade, terão as mãos fechadas ao ressuscitar ou quase
nada de cabelos. Podemos visualizar estes pesados fardos no filme “Os Fantasmas
de Scrooge” (2009), adaptação para o cinema do clássico “Um Conto de Natal”, de
Charles Dickens, onde Ebenezer Scrooge - milionário, mesquinho, que só pensa em
dinheiro - é avisado por seu falecido sócio, e também avarento, Joseph Marley,
que terá o mesmo destino que ele: carregar pesadas correntes para toda a
eternidade.
Em pântano de águas negras e
ferventes, sombras vagam nuas, cobertas de lodo, flagelando-se com unhas e
dentes, pagando pelo pecado da ira. O rio Estige, cujas águas imundas abrolham
ondas de suspiros, é atravessado pelos poetas na barca de Flégias, ao
percorrerem o Quinto Círculo. Neste círculo o autor pune Filipe Argenti, seu
adversário político na cidade de Florença, mergulhado na lama, que tal qual um
porco, revolta-se e dilacera-se em feroz loucura.
Passadas as portas da cidade de
Dite, cujas muralhas de fogo guardam as esferas mais profundas do Inferno e seus
mais graves pecados, penetram no Sexto Círculo, onde os que cometeram heresia e
seus seguidores, padecem em túmulos ardentes, que abertos, deixam escapar
gemidos e dores dos que ali se encontram. Aqui Dante conversa com Farinata,
outro adversário político, pertencente ao Partido dos Gibelinos.
O Sétimo Círculo, reservado aos
violentos, é subdividido pelo autor em três partes. No primeiro fosso, estão os
ladrões, assassinos, agressores, cujos espíritos permanecem mergulhados em um rio
de sangue fervente, uma alusão ao pecado cometido, ou seja, sangue com sangue
será punido. São guardadas pelo Minotauro e pelos Centauros, que disparam
flechas quando as almas sobem à superfície. No segundo recindo estão os que
cometeram violência contra si próprios e contra seus bens. Por rejeitarem o
próprio corpo em vida, os suicidas são transformados em árvores, servindo de
alimento para as Harpias, que provocam dores e sofrimento. Por entre eles,
correm nus, os espíritos dos dissipadores, caçados por negras e ferozes
cadelas. Os espíritos do terceiro recinto são os que cometeram violência contra
Deus, contra a arte ou natureza, seu castigo é permanecer sob incessante chuva
de fogo. Alguns permanecem deitados, outros sentados, enquanto um terceiro
grupo caminha sem parar. São os sodomitas, condenados na Idade Média por suas
práticas sexuais transgressoras aos princípios cristãos, demonstrando a
mentalidade do homem medieval e os paradigmas norteadores da religião católica.
Entretanto, este recinto é povoado por alguns clérigos, explicitando o
descontentamento do autor em relação à Igreja, pois o exílio imposto a ele
deu-se graças à oposição de um papa.
O Oitavo Círculo, também subdividido,
é onde pagam os que pecaram pela fraude. Encontram-se neste círculo os
simoníacos, que por negociarem relíquias divinas, estão condenados a ficarem de
cabeça para baixo, com os pés em fogo. Podemos imaginar quantas pessoas
atualmente deveriam povoar este recinto, uma vez que a religião tornou-se um
meio de enriquecimento pessoal, não diferindo muito da Idade Média, quando a
Igreja fez uso de seu poder dito como divino para ampliar seus recursos? Também
neste círculo estão os mágicos e adivinhos, cujas cabeças, voltadas para as
costas, permitiam ver somente o que ficou para trás, penitência por tentarem
prever o futuro. Os hipócritas, por sua vez, revestiam-se com pesadas túnicas
de chumbo dourado – falso dourado representando as mentiras espalhadas em vida.
Os falsários, estendidos no chão de um dos dez recintos, padecem cobertos de
lepra, um dos piores tormentos do homem medieval, que assola a Europa,
inclusive, no período no qual Dante escreve a obra.
No último Círculo do Inferno ficam
os traidores. Curioso salientar que este espaço é descrito como frio, coberto
de gelo que mais se parece com vidro. Podemos associar isto aos gélidos
corações de seus ocupantes, ou ao clima europeu, no qual o frio castiga
plantações e difunde a peste. Lá estão encravados no gelo aqueles que traíram
pessoas do próprio sangue, amigos, chefes e benfeitores. Lá se encontra Lúcifer,
o belo anjo de luz, agora feio. Contava com três rostos, um vermelho, um
amarelo e negro como fuligem. Devora em cada uma de suas bocas um traidor,
Judas, Brutus e Cassius, considerados, por Dante, os maiores traidores da
História, dignos de serem castigados pessoalmente pelo próprio Demônio.
A obra de Dante pode ser
interpretada como o simbolismo em busca de Deus, em busca da fé, empreendida
por um homem que se encontra nitidamente confuso e desolado. Não há como negar
o sentido moralizante que o autor imprime em sua narrativa, suas ideias,
baseadas nos princípios cristãos, que levam os leitores a refletirem acerca da
vida que escolheram viver. Com isso, alguns questionamentos são impostos,
conscientes ou não, como a eterna pergunta da humanidade se há ou não vida após
a morte? Se há, como deve ser? Até que ponto nossas atitudes influenciam aquilo
que vem depois? Como é, de fato este Lúcifer, que no imaginário de Dante possui
três cabeças e nos dias atuais é representado por um homem geralmente elegante
e bem vestido? Qual a capacidade de almas deste Inferno, visto que é um local
escavado no solo? Há possibilidade de expandi-lo?
De qualquer forma, A Divina Comédia sobrevive ao tempo,
seja por seus personagens históricos, seja pela criatividade empregada na
narrativa. Continua exercendo profundas influências em pintores, poetas,
músicos e cineastas, atraindo adultos e crianças.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALIGHIERI,
Dante. A Divina Comédia. Tradução de Fábio M. Alberti. Porto Alegre,
RS: L&PM, 2006, 334p.
FRANCO
JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. 2ed., São Paulo, SP: Brasiliense,
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Site:
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Acessado em: 24/04/2011.
Direção:
Robert Zemeckis. Os Fantasmas de Scrooge. Título original: (A Christmas Carol).
EUA, 2009, 96 min, Animação.
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