terça-feira, 20 de maio de 2014

Dante e o Inferno de "A Divina Comédia"

DANTE – VIDA E OBRA

A literatura do período Medieval apresenta, constantemente, relatos de viagens a outros mundos, empreendidas de diferentes formas: a pé, a cavalo, de barco, normalmente com um guia ajudando o personagem principal a alcançar seus objetivos, trazendo à luz a mentalidade deste homem medievo. O universo era interpretado como um imenso conjunto de símbolos - forma de expressão máxima do homem da Idade Média - a maneira com que ele exteriorizava seus sentimentos.
O principal livro deste período foi a Bíblia, outras produções relacionavam-se aos seus textos ou a interpretações. No contexto medieval, cabe ressaltar que a maior parte da população era analfabeta, tendo acesso as narrativas bíblicas somente através de pinturas, mosaicos e vitrais. A partir do reinado de Carlos Magno esta situação começa a ser modificada através do incentivo às atividades culturais, incluindo educação e literatura. Assim, juntamente com o renascimento urbano e o surgimento de uma burguesia, nasce uma obra que perpassou os tempos, e que permanece, até hoje, atraindo e influenciando a vida de quem a lê. Trata-se de A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
A Florença do século XIII era caracterizada pela autonomia política e econômica, pois servia de entreposto comercial, possuía pequenas indústrias e artesanato, berço cultural da Itália. Encontrava-se assolada por brigas políticas entre o Partido dos Guelfos, divididos entre Brancos e Negros e o Partido dos Gibelinos. É neste contexto em que vive Dante, nascido em Florença provavelmente no dia 30 de maio de 1265.
Dante é letrado no convento de Santa Cruz e aprofunda-se em Literatura, Retórica e Filosofia na escola do mestre Bruno Latini. Aos nove anos apaixona-se por Beatriz Portinari, que casa com um banqueiro e morre logo em seguida, em 1290. Dante, embora não esquecendo a imagem de Beatriz casta e beatífica, teve outros amores terrenos e casa-se com Gemma Donati, com quem teve três filhos.
Desenvolve carreira pública e, como político, tenta apaziguar as facções rivais. É autor de uma proposta que expulsa da cidade os homens mais violentos das duas facções. O papa Bonifácio VIII intervém e, com a ajuda de Carlos de Valois, o partido dos Negros assume o poder. Em 1301, os Negros executam sua vingança, saqueando as residências dos Brancos e exilando-os.
De 1302 até 1321, ano de sua morte, Dante, exilado, vaga pela Itália, vivendo de favores, talvez até mesmo de esmola. Ao longo dos dez últimos anos de sua existência - 1310-1321 - escreve a Comédia. O poema, composto com base no simbolismo do número três (número da Santíssima Trindade), possui três partes - Inferno, Purgatório e Paraíso – cada qual dividida em 9 círculos, que totalizam 27 níveis, conta com três personagens principais - Virgílio, personifica a razão, Dante, representa o homem e Beatriz, simboliza a fé. Faz, de certa forma, um “acerto de contas” com seus inimigos, com seus medos e com seu eterno amor, Beatriz.
Não se tem um consenso acerca do título Comédia há quem afirme que se deu por se tratar de uma narrativa que inicia na tristeza e termina com alegria; por utilizar um estilo simples e linguagem vulgar, em oposição à tragédia, escrita em latim; ou por se referir ao sofrimento de nossas vidas, em oposição à alegria e paz do Paraíso, o eterno vislumbre de alcançar a Deus na hora da morte. O adjetivo “divina” é acrescentado posteriormente, talvez por Boccaccio.
Dante se coloca como personagem e escreve em primeira pessoa, representando o homem medievo, em busca de dignidade moral e espiritual, assim como justiça social. Sua narrativa, apresenta em contraste, traços de um homem moderno, que nega seu passado e busca na antiguidade clássica seus referenciais. Os personagens que povoam sua obra são pessoas de seu convívio, personalidades históricas, mitológicas ou políticos de Florença. Em seu poema, mostra a vida e os vícios da sociedade italiana da época, assim como a mentalidade, baseada na cosmovisão medieval, nas concepções filosófica e religiosa.
Se utilizando de alegorias e significados morais, o poeta pretendia escrever uma obra de doutrina e edificação, compreendendo o saber de seu tempo, teológico e filosófico. Nele é apresentada a história da conversão dos homens, que buscam a redenção de seus pecados, para encontrar Deus. Dante afirma em seu poema que não basta, para o homem, dizer que se arrependeu de seus pecados, e sim que é preciso ter fé e ser racional na sociedade do dogma.



INFERNO

“Por mim se vai à cidade das dores; por mim se vai à ininterrupta dor; por mim se vai à gente condenada. Foi justiça que inspirou o meu Autor; fui eleito por Poderes Divinais, Suma sapiência e Supremo Amor. Antes de mim, havia apenas coisas eternas, e eu, perduro. Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais!” (DANTE, p. 19)

A Divina Comédia estabelece uma hierarquia dos sete pecados capitais, cujas penas impostas satisfazem a significados simbólicos. O poema fascina pela riqueza de detalhes quase visuais, pelas dualidades bem e mal, pecado e penitência, amor e ódio, perfeitamente harmonizados em um clima tenso e soturno.
A narrativa tem inicio com o poeta perdido em uma “selva medonha”, mostrando claramente como se sente o poeta, homem de meia idade, exilado, passando por um momento de crise pessoal. Depara-se, ao tentar sair desta selva, em busca de luz, com três feras: uma pantera, que possivelmente representa a luxúria ou a cidade de Florença, um leão, a soberba e o orgulho, e uma loba, a avareza ou também pode ser interpretada como a cúria romana. Amedrontado, retorna à escura selva, demonstrando, desta forma, a sucessão de simbologias empregadas ao longo dos cantos, “ilustrando” suas ideias aos leitores.
A obra tem forte apelo político, uma vez que os aliados de Dante são colocados no Purgatório ou Paraíso, enquanto seus desafetos sofrem amargamente no Inferno. O autor evoca questões da vida pública de sua cidade natal, conflitos políticos e familiares, assim como suas questões pessoais, como seu grande amor por Beatriz.
No período em que o livro é escrito começam a serem questionados os abusos de poder da Igreja e seus luxos. Dante aponta estes comportamentos reprováveis da Instituição Católica, no século XIV, que hoje ainda se fazem presentes ao noticiarem escândalos ocultos nos bastidores da Igreja, como os crimes sexuais dos quais alguns membros são acusados. Entretanto, mesmo percebendo tais faltas da Igreja, Dante mantém-se fiel a sua religiosidade e sua fé, colocando Judas sendo mastigado por uma das bocas de Lúcifer, no Nono Círculo do Inferno.
O perfeito delineamento dos cenários aguça a curiosidade em vê-los representados. Ao contrário do imaginário atual, que percebe o inferno como um local extremamente quente, o Inferno de Dante, por vezes é gelado. Desprovido de luz, com furiosos ventos, poços de sangue, vales de dor e sombras, “rios de águas negras”, “cheiros pestilentos”... A descrição que o autor nos apresenta é assustadora e ao mesmo tempo encantadora. Para o homem medieval a luz representa a segurança psicológica, demonstrando, no livro, o intenso conflito entre o bem e o mal, presente na mentalidade do período.
Os personagens que habitam os versos ao extraídos da Antiguidade Clássica, sejam eles personagens históricos ou figuras mitológicas, demonstram o conhecimento e a admiração do poeta por aquele período. Seria por acaso a escolha de Virgílio, poeta grego que escreveu Eneida, admirado por Dante, como guia?
Curioso destacar que no Canto IV, Dante acorda, depois de atravessar o rio Aqueronte, na barca conduzida por Caronte, no Primeiro Círculo do Inferno, onde ficam as almas que viveram uma vida de virtudes, ou seja, não pecaram, porém, por não receberem o batismo. O castigo destas almas é viverem eternamente torturados pelos desejos frustrados. Neste círculo o autor coloca os poetas, filósofos e pensadores gregos – Platão, Sócrates, Virgílio -, que mesmo admirando-os, não pode colocá-los no Paraíso, demonstrando, assim, sua submissão aos princípios cristãos. Chamamos este círculo de Limbo, recentemente exterminado pela Igreja Católica, abrindo caminho para um questionamento fundamental: Para onde foram, portanto, as almas que habitavam o Limbo?
O Canto seguinte traz Minos, filho de Zeus, que após a morte desce ao Inferno, onde se torna juiz dos mortos, avaliando suas culpas e sentenciando-os, enviando para o círculo correspondente. Ele fica na porta do Segundo Círculo, no qual se encontram os luxuriosos, que, segundo Dante, são as “sombras que o amor conduzira à sepultura”. Cleópatra, Helena, Aquiles e Tristão são punidos aqui neste círculo desprovido de luz. Seus espíritos são lançados, incessantemente, de um lado a outro por fortes ventos. Mesmo punindo-os Dante sente por eles certa compaixão, pois, na Idade Média, o sexo era aceitável somente através do matrimônio, para fins de reprodução, ficando qualquer outra prática condenada ao Inferno.
No Terceiro Círculo os gulosos são condenados a ficarem deitados sob forte chuva de granizo, água e neve, tendo por características serem gélidas, escuras, impuras, pesadas e de odor pestilento. Os condenados são aqui vigiados pelo cão Cérbero, que furioso escancarava suas três bocarras e despedaçava, com suas garras aguçadas e seus olhos vermelhos, as almas. Em alguns períodos Medievais a escassez de alimentos fez com que a gula se tornasse um pecado mortal, digno de punição no Inferno.
Os avarentos e os pródigos se encontram no Quarto Círculo, condenados a carregarem pesados fardos e a se chocarem, incessantemente, enquanto gritam uns aos outros “Por que dissipar?” e “Por que gastar?”. Neste círculo Dante coloca alguns papas, cardeais e clérigos, que, desprovidos de identidade, terão as mãos fechadas ao ressuscitar ou quase nada de cabelos. Podemos visualizar estes pesados fardos no filme “Os Fantasmas de Scrooge” (2009), adaptação para o cinema do clássico “Um Conto de Natal”, de Charles Dickens, onde Ebenezer Scrooge - milionário, mesquinho, que só pensa em dinheiro - é avisado por seu falecido sócio, e também avarento, Joseph Marley, que terá o mesmo destino que ele: carregar pesadas correntes para toda a eternidade.
Em pântano de águas negras e ferventes, sombras vagam nuas, cobertas de lodo, flagelando-se com unhas e dentes, pagando pelo pecado da ira. O rio Estige, cujas águas imundas abrolham ondas de suspiros, é atravessado pelos poetas na barca de Flégias, ao percorrerem o Quinto Círculo. Neste círculo o autor pune Filipe Argenti, seu adversário político na cidade de Florença, mergulhado na lama, que tal qual um porco, revolta-se e dilacera-se em feroz loucura.
Passadas as portas da cidade de Dite, cujas muralhas de fogo guardam as esferas mais profundas do Inferno e seus mais graves pecados, penetram no Sexto Círculo, onde os que cometeram heresia e seus seguidores, padecem em túmulos ardentes, que abertos, deixam escapar gemidos e dores dos que ali se encontram. Aqui Dante conversa com Farinata, outro adversário político, pertencente ao Partido dos Gibelinos.
O Sétimo Círculo, reservado aos violentos, é subdividido pelo autor em três partes. No primeiro fosso, estão os ladrões, assassinos, agressores, cujos espíritos permanecem mergulhados em um rio de sangue fervente, uma alusão ao pecado cometido, ou seja, sangue com sangue será punido. São guardadas pelo Minotauro e pelos Centauros, que disparam flechas quando as almas sobem à superfície. No segundo recindo estão os que cometeram violência contra si próprios e contra seus bens. Por rejeitarem o próprio corpo em vida, os suicidas são transformados em árvores, servindo de alimento para as Harpias, que provocam dores e sofrimento. Por entre eles, correm nus, os espíritos dos dissipadores, caçados por negras e ferozes cadelas. Os espíritos do terceiro recinto são os que cometeram violência contra Deus, contra a arte ou natureza, seu castigo é permanecer sob incessante chuva de fogo. Alguns permanecem deitados, outros sentados, enquanto um terceiro grupo caminha sem parar. São os sodomitas, condenados na Idade Média por suas práticas sexuais transgressoras aos princípios cristãos, demonstrando a mentalidade do homem medieval e os paradigmas norteadores da religião católica. Entretanto, este recinto é povoado por alguns clérigos, explicitando o descontentamento do autor em relação à Igreja, pois o exílio imposto a ele deu-se graças à oposição de um papa.
O Oitavo Círculo, também subdividido, é onde pagam os que pecaram pela fraude. Encontram-se neste círculo os simoníacos, que por negociarem relíquias divinas, estão condenados a ficarem de cabeça para baixo, com os pés em fogo. Podemos imaginar quantas pessoas atualmente deveriam povoar este recinto, uma vez que a religião tornou-se um meio de enriquecimento pessoal, não diferindo muito da Idade Média, quando a Igreja fez uso de seu poder dito como divino para ampliar seus recursos? Também neste círculo estão os mágicos e adivinhos, cujas cabeças, voltadas para as costas, permitiam ver somente o que ficou para trás, penitência por tentarem prever o futuro. Os hipócritas, por sua vez, revestiam-se com pesadas túnicas de chumbo dourado – falso dourado representando as mentiras espalhadas em vida. Os falsários, estendidos no chão de um dos dez recintos, padecem cobertos de lepra, um dos piores tormentos do homem medieval, que assola a Europa, inclusive, no período no qual Dante escreve a obra.
No último Círculo do Inferno ficam os traidores. Curioso salientar que este espaço é descrito como frio, coberto de gelo que mais se parece com vidro. Podemos associar isto aos gélidos corações de seus ocupantes, ou ao clima europeu, no qual o frio castiga plantações e difunde a peste. Lá estão encravados no gelo aqueles que traíram pessoas do próprio sangue, amigos, chefes e benfeitores. Lá se encontra Lúcifer, o belo anjo de luz, agora feio. Contava com três rostos, um vermelho, um amarelo e negro como fuligem. Devora em cada uma de suas bocas um traidor, Judas, Brutus e Cassius, considerados, por Dante, os maiores traidores da História, dignos de serem castigados pessoalmente pelo próprio Demônio.
A obra de Dante pode ser interpretada como o simbolismo em busca de Deus, em busca da fé, empreendida por um homem que se encontra nitidamente confuso e desolado. Não há como negar o sentido moralizante que o autor imprime em sua narrativa, suas ideias, baseadas nos princípios cristãos, que levam os leitores a refletirem acerca da vida que escolheram viver. Com isso, alguns questionamentos são impostos, conscientes ou não, como a eterna pergunta da humanidade se há ou não vida após a morte? Se há, como deve ser? Até que ponto nossas atitudes influenciam aquilo que vem depois? Como é, de fato este Lúcifer, que no imaginário de Dante possui três cabeças e nos dias atuais é representado por um homem geralmente elegante e bem vestido? Qual a capacidade de almas deste Inferno, visto que é um local escavado no solo? Há possibilidade de expandi-lo?
De qualquer forma, A Divina Comédia sobrevive ao tempo, seja por seus personagens históricos, seja pela criatividade empregada na narrativa. Continua exercendo profundas influências em pintores, poetas, músicos e cineastas, atraindo adultos e crianças.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução de Fábio M. Alberti. Porto Alegre, RS: L&PM, 2006, 334p.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. 2ed., São Paulo, SP: Brasiliense, 2006, 201p.
Site: Cola da Web. Disponível em: http://www.coladaweb.com/resumos/a-divina-comedia-dante-alighieri Acessado em: 24/04/2011.
Site: Wikipédia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Alighieri Acessado em: 24/04/2011.
Site: Netsaber. Disponível em: http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_1851.html Acessado em: 24/04/2011.
Site: Portal São Francisco. Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/dante-alighieri/dante-alighieri.php Acessado em: 24/04/2011.

Direção: Robert Zemeckis. Os Fantasmas de Scrooge. Título original: (A Christmas Carol). EUA, 2009, 96 min, Animação.

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