quarta-feira, 4 de junho de 2014

Reflexões sobre a obra Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam




Erasmo de Rotterdam, como ficou conhecido o filósofo humanista Desidério Erasmo, que viveu entre os séculos XV e XVI, cria, em seu livro dedicado ao amigo Thomas More, autor de Utopia, um personagem muito conhecido, porém pouco discutido: a loucura. Escrito originalmente em latim Encomium Moriae e publicado em Paris, no ano de 1511, pelo escritor, filósofo e teólogo, marcou o Renascimento, tornando-se uma das mais célebres obras filosóficas, cujo conteúdo permanece atual.

Encantador, o ensaio sobre a Loucura faz com que realizemos uma jornada a favor de Moria, ou simplesmente, Loucura. Escrita durante a viagem de retorno da Itália para a Inglaterra, em 1509, serviu como distração para o autor, que ao lembrar-se dos estudos com os amigos que iria rever ao chegar a seu destino, percebe a relação entre o nome Morus e Moria – nome dado pelos gregos à Loucura. Erasmo realiza uma obra extremamente descontraída e irreverente, totalmente desprovido da técnica rebuscada e rígida dos filósofos e teólogos de seu tempo. O Elogio da Loucura é considerado um dos mais influentes livros da civilização ocidental e um dos catalisadores da Reforma Protestante.

Erasmo utiliza-se da figura da Loucura como ponto de partida temático, que além de servir de escudo para si mesmo, critica a sociedade europeia, desmascarando hipocrisias sociais e satirizando costumes decadentes.

Construído como um diálogo intensamente provocador, no qual a Loucura, indignada com a abstenção de elogios a seu respeito, decide, por fim, elogiar a si própria e mostrar o quão presente está na vida da sociedade. Descrevendo minuciosamente as ações humanas, ela nos mostra o quão presente se encontra e se mostra fundamental à vida, atraindo a simpatia do leitor. A obra, de cunho filosófico, é uma das mais divertidas de todos os tempos. Inicia com tons satíricos, ganhando, gradativamente, aspectos mais sombrios, na medida em que o autor constrói sua crítica aos abusos da Doutrina Católica, bem como às corruptas práticas ocorridas na Igreja, encerrando com um testamento claro e emocionante dos ideais cristãos.

Ao longo do texto é a Loucura, personificada, quem fala em incisivas e extravagantes imagens e simbolismos, produzindo um verdadeiro monólogo, descrevendo-se a todos os momentos, ressaltando suas qualidades e percorrendo fatos históricos que, na linha de um discurso construído, seriam por ela provocados, manipulados e finalizados. Enquanto a Loucura discursa, o leitor faz uma verdadeira viagem à Mitologia Grega, ao Classicismo Helênico e a diversos episódios da Antiguidade que marcaram a Literatura e o modo de pensar e agir de toda uma sociedade.

O período histórico, no qual Erasmo esteve inserido, certamente concebeu e contextualizou o Elogio da Loucura. Pouco tempo após este ensaio, a Europa viveria a Reforma Protestante, e muitos valores tradicionais, oriundos de dogmas religiosos, viriam a ruir, sendo o próprio autor um dos precursores intelectuais do movimento de reforma, que culminou com mudanças em toda estrutura de crenças e condutas da sociedade. O Elogio da Loucura é um forte apelo à emotividade, um enaltecimento corajoso à libertação dos indivíduos de uma possível “opressão da razão” pelos instintos naturais, uma visão romântica da Loucura em sua expressão mais jovial, como uma verdadeira deusa grega que impulsiona os indivíduos a suportar a vida, ao ímpeto saudável as atitudes, à grande compaixão sobre a natureza humana.

Para a Loucura, a sabedoria é um fenômeno pejorativo, pois cansa, gera sofrimentos e amadurece o indivíduo de forma anormal. Desta forma, a Loucura faz aos homens, apelos incessantes para que façam suas definitivas preferências à liberdade, ao prazer, à flexibilidade, à fuga dos valores tradicionais impostos por um sistema moral - religiosamente rígido e complicado. A loucura se diz habitar o casamento, os filósofos, a ciência, as artes, a religião. Em atitude ousada, diz-se, inclusive, regente de governos, da formação de cidades, das relações humanas, do senso comum. Afirma que boa parte da sociedade se origina graças à presença da loucura: os juristas, ao criar centenas de leis sem se preocupar com a relação que existiria ou não entre elas, estão embebidos na loucura; o aspecto encantador das crianças, que retarda todos a sua volta; a busca do jovem pelos prazeres da vida; a procura incessante por verdades e sabedoria dos filósofos; as tentativas ridículas das mulheres para atrair os homens; a ignorância; a esperança, enfim, tudo isso existe graças a ela, a nada modesta loucura.

A crítica da Loucura defende, em suma, um retorno à simplicidade da Igreja, a reforma de costumes, a luta contra a corrupção, superstição, ritualismos exacerbados e fanatismo. Busca, portanto, a definição de um ideal de paz e tolerância no seio da sociedade. Erasmo não teve a pretensão de atacar ninguém, contudo não foi compreendido, sendo acusado de heresia pelo resto de seus dias. Ninguém escapou (ou escapa) da crítica da Loucura, já que o ser humano, de qualquer época, está sujeito às vaidades do poder, da sabedoria, da riqueza... Podemos perceber, desta forma, que apesar da lacuna temporal que nos separa, o Elogio da Loucura mantem-se relevante, denunciador e provocante nos dias de hoje, evidenciando a consistência de ideias e estrutura, proporcionando ao leitor transitar entre a realidade vivida por Erasmo e sua própria

Ao longo do texto, a Loucura se mostra como a mãe da humanidade, uma vez que ela é a “mola oculta da vida” e ninguém lhe escapa. E é neste tom de brincadeira que Erasmo denuncia problemas reais tais como a ingratidão, a hipocrisia e a intolerância – com grande destaque na obra. Apesar de ser teólogo e cristão, Erasmo promove a crítica à Igreja, colocando a Loucura, inclusive, como regente deste meio, apontando-a como fator explicativo para os conflitos armados nos quais a Igreja se envolve, a cobrança de impostos sobre os fiéis com a finalidade de salvação das almas, o apego material do bispos... Para isso, lança mão de frases de importantes personagens da Igreja, comprovando que a Loucura era aceita por Cristo e religiosos. Ridiculariza a arrogância dos católicos, bem como a pretensão dos protestantes ao reinterpretar o cristianismo, fazendo com que o autor se tornasse uma das grandes expressões do humanismo do período.

O autor também satiriza diferentes condições humanas, como a infância - anunciada como a fase em que falamos e agimos sem pensar, despreocupados com as consequências de nossos atos – e a velhice – quando a loucura faz das pessoas novamente crianças com os delírios e esquecimentos.