quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA - Por uma História mais social


A partir da década de 1970, a historiografia passou por diversas renovações, momento que ficou conhecido como “virada antropológica”, na qual se aproximam duas áreas do conhecimento, a história e a antropologia. Este caráter interdisciplinar permanece impresso na produção historiográfica contemporânea, cujas temáticas se ampliaram frente a novos objetos e métodos.
Entretanto esta interdisciplinaridade não é assim tão nova. Alguns historiadores do século XVIII e XIX, entre eles d’Aussy, já se preocupavam em fazer uma história mais social, voltada para o cotidiano, para as mentalidades, com abordagens culturais, se opondo à história elitista, voltada para grandes feitos, característica da Escola Metódica. Michelet busca, na história alimentar, da sensibilidade, do comportamento, outras explicações às sociedades, ou seja, uma visão etnológica. Jacques Le Goff afirma que "Lucien Febvre ontem, um Fernand Braudel hoje, que primeiro viram em Michelet o pai da história nova, da história total que quer abarcar o passado em toda a sua totalidade, desde a cultura material até às mentalidades"[1]. Enquanto isso, Legrand é definido por André Burguière[2] como alguém além de seu tempo, já que para ele a história era “uma mistura constante de comportamentos herdados (portanto de permanências) e de fenômenos de adaptação ou de invenção”.
Graças a este movimento de revisitar as temáticas culturais, intensificado pela Escola dos Annales, que os historiadores puderam refletir acerca de objetos pertencentes, até então, às pesquisas antropológicas. Surgida na França, em 1929, para contrariar o modelo de história produzida - que reduzia o campo histórico ao político -, a Escola dos Annales divide-se em três gerações: na primeira geração destacam-se seus fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch, provavelmente inspirados nos trabalhos de Michelet e Legrand; a segunda pode ser representada por Fernand Braudel; enquanto a treceira é integrada por nomes como Georges Duby e Jacques Le Goff.
É preciso levar em consideração o contexto político e econômico do século XX, no qual são desenvolvidas estas novas temáticas, pois os regimes totalitários na América Latina e as lutas de independência na África exigiam um novo olhar. Busca-se, então, conceitos, referenciais teóricos, que possibilitassem o entendimento de realidade sociais desvanecidas até então. A história alia-se a outros ramos das ciências sociais e humanas, no intuito de reformular o conhecimento histórico. Estabelece um denso diálogo com a antropologia, da qual antropólogos como Pierre Bourdieu e Michel de Certeau, irão influenciar muito trabalhos de historiadores. Temas como o medo, o corpo, a morte, a loucura, o clima, a feminilidade, entre outros, são objetos de estudo desse novo historiador, que vê nos aspectos da vida humana uma nova dimensão, ou seja, a perspectiva cultural.
As duas disciplinas possuem semelhanças evidentes, pois ambas estudam sociedades que não existem mais, que são outras, pois já se transformaram, e são, obrigatoriamente, aquelas nas quais não vivemos. Sobre isso, Lévi-Strauss afirma: "o comum é que são sistemas de representação que em seu conjunto diferem de seu investigador” [3]. Seus objetos de estudo, pessoas no tempo versus pessoas no espaço; seus objetivos, o diverso; nos métodos, pesquisa em arquivos por um lado, pesquisa participante, por outro; ambas buscam a melhor compreensão do homem e suas especificidades, porém, "enquanto a história organiza seus dados em relação às expressões conscientes, a etnologia indaga sobre as relações inconscientes da vida social” [4]. O fato é que diferenças foram sendo construídas com o intuito de estabelecer o limite entre as disciplinas, assim como de criar uma identidade particular a cada uma delas.
M. Mauss aponta que História e Antropologia ampliam o conhecimento, que, por sua vez, concretiza nossa própria transformação. Dito isso, podemos perceber que os estudos dialogam com as culturas anteriores, preservando uma dinâmica cultural, na qual a produção acerca de um objeto, inserido em um determinado contexto, retraduz modelos culturais anteriores.
Ainda falta, porém, uma definição do que é História e qual seu campo de estudo. A preocupação desta disciplina é descrever, analisar e interpretar as transformações nas sociedades humanas ao longo do tempo, construindo uma dialética entre passado e presente. A relexão exigida pelo seu campo de ação leva a uma consciência crítica desenvolvida. Enquanto ciência é também metodo e ação coletiva na constituição do conhecimento, ampliando observações conscientes acerca dos locais sociais nos quais se insere como indivíduo ou em grupo. Podemos compreendê-la enquanto percepção das mudanças do tempo, independente de produzir ou não registros, já que a memória, através da oralidade,  cumpre o papel de preservar acontecimentos importantes para o grupo social e futuras gerações. Sobre isto, Dirceu Lindoso discorre:

Todos os povos têm história, mesmo os pré-históricos, porque são os nossos antepassados. E ter um antepassado é ter uma história. E se ela é perceptível ou não, isso é outra história. Mas a percepção antropológica da história deve ser criada [...] Desde que o homem existe, a história existe; só que para ser criada a história escrita, as sociedades que tiveram que se dividir em classes, com cujo tempo disponível adveio à escrita. A escrita fixa a memória da história, mas quem cria a história é a vida social. [5]

Também sobre o registro da História, o historiador Ki-Zerbo, pondera acerca da construção da História do continente africano, e segue:

Recusamos a teoria que nega a possibilidade de escrever a História da África Negra, deixando a este continente o direito apenas de uma etnohistória. Somos por uma história de múltiplas fontes e polivalente que tome em conta absolutamente todos os vestígios humanos deixados pelos nossos antepassados. [6]

Graças à Antropologia, a visão de uma História eurocêntrica tem caído por terra, sofrendo um sistemático processo de desconstrução, delimitado pela utilização de novas fontes, métodos e posturas na pesquisa.
Quanto à definição de Antropologia, Vagner Gonçalves da Silva explica:

É possível entender a antropologia como uma forma de conhecimento sobre a diversidade cultural, isto é, a busca de respostas para entendermos o que somos a partir do espelho fornecido pelo “Outro”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais podemos alargar nossas possibilidades de sentir, agir e refletir sobre o que, afinal de contas, nos torna seres singulares, humanos. [7]

Podemos concluir, portanto, que, pela Antropologia estudar a cultura de diversos povos, ela auxilia os historiadores a compreender determinadas formas de vida e suas transformações, examina a influência da cultura nos processos históricos e permite reconstruir determinados períodos através de diversas manifestações culturais. A Antropologia nos faz perceber que as manifestações culturais procedem das pessoas, que as realizam seguindo suas emoções, ideais e valores. Os processos culturais, por sua vez, podem ser considerados documentos vivos da história, já que é através da cultura que todo o conhecimento humano se manifesta.
O diálogo entre antropologia  e história não significa a perda de identidade do historiador, que tão-somente utiliza a ciência vizinha para solucionar questões que os métodos da história não possuem, como a valorização do outro, para compreender sua visão de mundo. Cabe, portanto, ao historiador trabalhar de forma interdisciplinar, sem, contudo, perder seu objetivo histórico, ou seja, analisar a história a partir de uma visão antropológica, exercida através da criticidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


LIMA, Euges. História e antropologia - uma aproximação profícua. Julho, 2008. Disponpivel em: http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=980
Acessado em: 21/06/2011.


SANTOS, Irineia M. Franco dos. História e Antropologia: Relações Teórico-Metodológicas, Debates sobre os Objetos e os Usos das Fontes de Pesquisa. Revista Crítica Histórica, Ano I, Número I, Junho 2010.  Disponível em: http://sites.google.com/site/revistacriticahistorica/numerozero/artigos-fluxo-contnuo/histria-e-antropologia Acessado em: 21/06/2011


SANTOS, Márcio Sant’Anna dos. A relação entre a História e a Antropologia – breves considerações. Fevereiro, 2009. Disponível em: http://www.debatesculturais.com.br/a-relacao-entre-a-historia-e-a-antropologia-breves-consideracoes/ Acessado em: 21/06/2011


SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. História e Etnologia. Lévi-Strauss e os embates em região de fronteira. Revista de Antropologia, vol.42, n.1-2, São Paulo, 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-77011999000100011&script=sci_arttext Acessado em: 21/06/2011.


______. Sobre uma antropologia da história. Questões De Fronteira, Novos Estudos, Número 72, Julho 2005.



[1] LE GOFF apud LIMA, 2008.
[2] LE GOFF, 1993, p.125 apud LIMA, 2008.
[3] LEVI-STRAUSS, apud SCHWARCZ, 1999.
[4] Idem 3.
[5] LINDOSO apud SANTOS, I., 2010.
[6] KI-ZERBO apud SANTOS, I., 2010.
[7] SILVA apud SANTOS, I., 2010.